A importância do contexto linguístico na compreensão da fala

contexto linguístico

Escrito por Sigla Educacional

3 de fevereiro de 2025

A importância do contexto linguístico na compreensão da fala

Pistas presentes na própria estrutura da conversa ajudam na compreensão da fala, auxiliando no processamento rápido da fala, tanto na compreensão quanto na interação interpessoal. As palavras são inseridas em um “contexto linguístico” que inclui elementos como semântica, sintaxe e prosódia, permitindo uma interpretação mais eficiente do que quando analisadas isoladamente, permitindo o fechamento auditivo.

Esse contexto é especialmente útil para pessoas com perda auditiva, pois restringe as possibilidades de interpretação do que é ouvido, facilitando o processamento da fala por meio de diferentes mecanismos cognitivos, tornando esse momento de troca menos frustrante e desgastante. No entanto, Fernandez e colaboradores (2024)contrapõe essa afirmação, postulando que a perda auditiva pode dificultar o uso de um desses mecanismos: a capacidade de prever o que será dito em seguida com base no contexto.

Os autores distinguiram três classes de mecanismos cognitivos que são proporcionadas por um contexto linguístico, sendo eles pós-dicção, interação e predição. Os autores discutiram também a importância dos efeitos de contexto em situações de escuta difícil ou escuta degradada.

Por pós-dicção os autores entendem como o mecanismo que pode ser usado quando um segmento de fala não está presente ou é percebido erroneamente, ocorrendo, obrigatoriamente, após o segmento de fala alvo mal percebido. A pós-dicção pode envolver o uso de fala subsequente, informações processadas anteriormente ou ambos. Por exemplo, um ouvinte pode ouvir a frase: Eu fui ao shopping e comprei um par de …… de salto alto para ir ao casamento do meu primo e inferir, retrospectivamente, que a palavra ouvida foi sapato, seja pela reinterpretação da frase inicial ou usando informações subsequentes da conversa.

A integração não é tão clara para a audiologia, ela permite que o ouvinte realize uma análise de baixo para cima a cada novo elemento acrescentado na fala combinando-o com o que o precedeu. A integração é mais facilmente compreendida em contextos restritivos. Os mecanismos de integração e pós-dicção podem estar relacionados à velocidade de processamento, sendo a sua independência ainda obscura.

Já a predição está correlacionada única e exclusivamente à ativação prévia de informações linguísticas de significado, sintaxe, fonologia, forma de palavra. Ou seja, os ouvintes antecipam o que, provavelmente, ocorrerá em um futuro próximo sem encontrar uma entrada que traga, ou carregue, essa informação. Um exemplo, um ouvinte poderia ouvir “O sol está atrás de uma ………, por isso não podemos vê-lo” e ativar previsivelmente a palavra nuvem.

A grande vantagem da predição é que, ao presumir a palavra que virá a seguir ocorre a redução da competição lexical otimizando e acelerando o processamento da entrada auditiva.

Portanto, os autores utilizam pós-dicção como ocorrendo após ouvir o alvo, integração como ocorrendo ao ouvir o alvo e predição como ocorrendo antes de ouvir o alvo.

Pesquisas sobre comportamento e cognição na escuta em condições adversas se dividem em duas áreas principais: o uso do contexto por ouvintes sem perda auditiva (SPA) em diferentes condições de escuta e o impacto do contexto na compreensão de pessoas com perda auditiva (CPA) em comparação com ouvintes da mesma idade.

Embora a escuta em ambientes degradados não reproduza completamente a experiência de quem tem perda auditiva—pois não afeta aspectos como resolução espectral, temporal e espacial, nem alterações cognitivas de longo prazo, a análise desses dois campos de estudo contribui para uma compreensão mais ampla do tema.

O impacto do contexto na compreensão da fala em condições adversas tem sido investigado por diferentes métodos. Um deles envolve apresentar fala com ruído e medir a inteligibilidade de frases com alto ou baixo contexto. Estudos mostram que frases com mais contexto resultam em maior precisão na identificação da palavra.

Outra abordagem é a restauração fonêmica, em que ouvintes, guiados pelo contexto, percebem partes ausentes da fala como se estivessem presentes. Pesquisas indicam que esse efeito ocorre tanto em silêncio quanto sob níveis moderados de degradação. No entanto, esses estudos não confirmam que o benefício do contexto decorre necessariamente da previsão.

Outra linha de pesquisa utiliza o paradigma do mundo visual (PMV), que rastreia o olhar dos participantes enquanto ouvem uma fala e analisam imagens relacionadas. Se os participantes olham para a imagem correta antes de sua menção, há indícios de previsão; se depois, sugere integração posterior.

Wagner (2016) estudou o efeito de verbos semanticamente restritivos na resolução de concorrentes fonológicos e semânticos, tanto em fala natural quanto degradada. Embora não comprovem a antecipação da informação, os resultados indicam que, em condições normais, os participantes usaram o contexto para integrar e eliminar opções irrelevantes mais rapidamente do que em condições de escuta degradada. Isso sugere que a degradação da fala prejudica o uso do contexto para distinguir entre concorrentes semânticos e fonológicos.

Failes e Sommers (2022) investigaram, por meio do paradigma do mundo visual, como previsões são ajustadas quando a palavra-alvo de uma frase está degradada. Frases foram apresentadas de forma clara, com exceção da palavra final, que estava no ruído, permitindo que o contexto fosse compreendido, mas dificultando a identificação do alvo. Tanto jovens quanto idosos sem perda auditiva anteciparam corretamente a palavra-alvo e direcionaram o olhar à imagem correspondente antes de ouvi-la.

No entanto, quando a previsão não se confirmava (por exemplo, ao ouvir “Ela coloca o brinquedo na raposa” em vez de “na caixa”), os ouvintes mais velhos demoravam mais para corrigir sua interpretação, sugerindo uma dependência maior de previsões diante de entradas auditivas degradadas. Esse efeito pode ser explicado pela hipótese do “canal ruidoso”, que sugere que ouvintes lidam com incertezas e usam o contexto para inferir significados. Assim, adultos mais velhos, com maior experiência linguística, podem confiar mais na previsão do que os mais jovens.

Esses achados indicam que, em condições ideais, ouvintes sem perda auditiva conseguem prever palavras em tempo real, mas em situações degradadas, seu uso do contexto é prejudicado. Além disso, a capacidade de prever pode depender de fatores individuais, como a memória de trabalho verbal e espacial. Embora a previsão seja útil e às vezes supervalorizada, em ambientes de escuta degradados, sua eficácia pode ser limitada, embora outros benefícios do contexto ainda possam ser aproveitados.

Pessoas com perda auditiva frequentemente enfrentam desafios na escuta e estudos sugerem que sua capacidade de usar previsões pode ser reduzida. Embora diversas pesquisas tenham analisado o benefício do contexto linguístico na compreensão da fala, poucas avaliaram diretamente o uso da predição. A maioria dos estudos se concentra na integração ou pós-dicção e não há pesquisas publicadas que investiguem explicitamente a predição em CPA.

Estudos sobre inteligibilidade da fala no ruído mostram que CPA se beneficiam significativamente do contexto linguístico, reduzindo a diferença de desempenho em relação a ouvintes sem perda auditiva em frases altamente previsíveis. No entanto, a quantidade de contexto necessária para esse benefício pode ser maior para CPA. Pesquisas que medem o tempo necessário para identificar palavras finais em frases, indicam que CPA demoram mais para reconhecer palavras, especialmente em contextos menos previsíveis. Além disso, pessoas com perda auditiva moderada não demonstram restauração fonêmica, o que pode indicar dificuldades na predição.

Evidências neurofisiológicas também sugerem um uso reduzido da predição em CPA. A teoria da “previsão por produção” propõe que ouvintes simulam internamente a fala para antecipar o que virá a seguir. No entanto, estudos indicam que CPA apresentam menor envolvimento motor ao ouvir fala, sugerindo um processamento preditivo atípico. Além disso, pesquisas sobre rastreamento neural mostram que CPA dependem mais do processamento acústico bottomup do que da predição baseada no contexto top-down, diferentemente dos SPA. Esses achados reforçam a hipótese de que a perda auditiva pode alterar a forma como previsões são utilizadas na compreensão da fala.

A dificuldade que pessoas com perda auditiva enfrentam em manter conversas pode estar relacionada ao uso reduzido da predição. Embora CPA possam se beneficiar do contexto linguístico, não há evidências de que utilizem predição da mesma forma que ouvintes sem perda auditiva. Estudos mostram que quando SPA são expostos a condições auditivas degradadas ou sobrecarga cognitiva, seu uso de contexto na fala em tempo real também diminui, sugerindo que CPA podem enfrentar desafios semelhantes.

A predição pode ocorrer em dois estágios: um primeiro, mais automático e de baixo custo cognitivo, baseado em associações, e um segundo, mais exigente, que adapta as previsões ao contexto específico. Em CPA, a redução da audibilidade pode prejudicar o primeiro estágio, enquanto a sobrecarga cognitiva afeta o segundo, tornando a predição menos eficaz. Isso também é observado em falantes de segunda língua, que enfrentam maior demanda cognitiva para prever palavras.

Três fatores podem explicar a predição reduzida em CPA:

  1. Alto custo cognitivo – O esforço para processar estímulos auditivos degradados pode consumir recursos essenciais para a predição. Além disso, CPA podem ter dificuldades em armazenar e manter informações verbais, o que impacta sua capacidade de antecipar palavras com precisão.
  2. Confiabilidade reduzida – Como a perda auditiva pode distorcer a percepção do contexto, previsões imprecisas tornam-se mais prováveis, reduzindo sua utilidade e, consequentemente, o engajamento na predição. Com o tempo, CPA podem depender menos desse mecanismo por perceberem que ele oferece menos benefícios.
  3. Uso de estratégias alternativas – CPA podem priorizar outros recursos na comunicação, como pós-dicção (processamento após a fala ser ouvida) ou pistas visuais, como expressões faciais e gestos, que oferecem maior benefício com menor custo cognitivo. Essa adaptação pode desviar recursos do uso da predição sem que haja um déficit intrínseco nesse processo.

Assim, embora CPA possam se beneficiar da predição, seu uso pode ser limitado por dificuldades cognitivas, baixa confiabilidade ou uma estratégia compensatória voltada para outros aspectos da comunicação.

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